Brasileiro tem memória?


Não sei se é generalizar demais afirmar que todos nós, brasileiros, muitas vezes nos esquecemos da onde viemos. (Na verdade, acho que é, mas arrisco continuar). Não me refiro à origem da nossa família ou à luta de nossos pais na busca pela melhoria da qualidade de vida da chamada classe média. Falo do começo de tudo, da época da formação dos povos dessas terras tropicais há mais de 1.500 anos. Será que mantemos acessível na memória nossas influências, misturas, heranças culturais que fazem de nós uma nação? Será que a mídia nos ajuda a lembrar, a pensar sobre isso?

O legado deixado por nossos colonizadores e pelos primeiros moradores dessas bandas de cá da América, continentais em tamanho, é, de fato, muito grande. Mas o assunto em questão, aqui, é herança racial. Ou, mais objetivamente, racismo.

Entre algumas coisas contraditórias, o sociólogo recifense Gilberto Freyre acerta quando apresenta o negro da época dos senhores de engenho como um colonizador. No livro Casa Grande & Senzala, o escritor se refere ao escravo como um ator de papel fundamental na criação da identidade brasileira, assim como os costumes portugueses e indígenas ajudaram na construção da nossa “personalidade” nacional.

Freyre lembra que o negro trouxe consigo, do continente africano, conhecimento culinário, religioso e de pecuária. Herdamos deles grande parte das nossas raízes musicais e folclóricas, e essa mistura foi imprescindível para a formação de uma nação culturalmente rica.

O autor deixa claro que as atitudes do negro não eram determinadas pela cor. O escravo podia ser taxado, sim, de desonesto, vulgar e mentiroso. Mas ele agia dessa forma porque era preso, vivia confinado, era torturado. Caso eu ou você, brancos ou amarelos, vivêssemos em iguais condições, certamente nossas reações à escravidão seriam as mesmas. (Freyre, p. 397)¹

Ora, só partindo dessa construção de raciocínio já seria óbvio pensar que preconceito racial é, racionalmente, algo inconcebível e sem lógica. Se uníssemos a isso outros motivos, de ordem política ou religiosa, por exemplo, só engrossaríamos os argumentos em favor da não discriminação. Mas esses discursos não parecem tão fáceis de serem encontrados na mídia. Em outros posts deste blog já falamos sobre o papel vital que os meios de comunicação desempenham na sociedade e sobre a força de influência que têm sobre as pessoas.

Porém, talvez a mídia não esteja usando como (ou o quanto) deveria esse poder a favor da pregação da igualdade entre as raças. E por quê? Simples: os próprios produtos que a mídia cria reforçam velhas ideias preconceituosas.

Pense rapidamente: quantas vezes você em uma novela o pobre, marginal ou drogado sendo interpretado por uma pessoa branca? (Aposto que pouquíssimas!) Não vale as vezes em que o rico, personagem principal, se envolve com trambiqueiros... E o que me você me diz do símbolo da sensualidade representado pela bela mulata da escola de samba? É praticamente um “produto” sexual pronto para ser exportado mundialmente (que, convenhamos, já é há muito tempo). Como se não existe outra infinidade de belezas nesse Brasil de meu Deus a serem mostradas mundo afora.

E o que dizer das peças publicitárias, nem importa sobre o quê, onde só aparecem brancos aparentemente felizes, bem-sucedidos e satisfeitos com o produto apresentado na propaganda? Inclusive, recentemente, o governo federal – por meio a secretaria de Igualdade Racial da Presidência da República – moveu uma ação na justiça para reclamar a inexistência de negros na campanha publicitária da fralda Serenata, da Turma da Mônica.

Não há crime na não-presença de negros em propagandas. Nem é essa a questão. O problema é a associação do negro a estereótipos negativos e a retratação inadequada, ou melhor, distorcida da realidade brasileira. Explico.

A população brasileira não é formada por maioria branca. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) indicam que 6,3% dos brasileiros são pretos e 43,2% são pardos (para o governo, pardos são considerados negros). Se levarmos em conta os índices referentes aos amarelos e aos indígenas, o resultado da soma de todas as pessoas negras é superior ao número de brancos brasileiros. Essas informações foram apresentadas na Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, elaborada em 2006. O documento confirma:

No que diz respeito à distribuição por cor da população, pode-se verificar uma considerável queda no percentual de participação da população branca, a que, pela primeira vez nas duas décadas de levantamentos estatísticos sistemáticos por pesquisas amostrais, não alcança a 50% da população total.²

Mas, se a maioria é não é branca, porque a mídia não reflete isso? Como acabei de mencionar texto acima, cadê as propagandas com negros? Afinal, negros também consomem! Negros fazem compras! O racismo no Brasil existe e é velado.

Em um estudo realizado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), verificou-se que, entre dezembro de 2005 e fevereiro de 2006, apenas 7,3% das pessoas presentes nas propagandas publicadas nos jornais paranaenses eram negras. Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, o psicólogo e pesquisador Paulo Baptista da Silva, orientador do levantamento, afirmou que, na publicidade, “a figura do branco é [ligada] à norma de humanidade, ao belo. Já a imagem do negro aparece como sinônimo de feio e primitivo.” (Clique aqui para ler a matéria na íntegra.)

É fácil encontrar na mídia representações do negro como trabalhador braçal (doméstica, pedreiro, operário), mas é muito difícil encontrar negros representados em posições valorizadas ou de destaque como empresários ou pessoas bem-sucedidas.

E, então, estou generalizando ao afirmar que nós, brasileiros, muitas vezes nos esquecemos da onde viemos?

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Referências:

1 - FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51ª ed.rev. São Paulo: Global, 2006.

2 - Clique aqui para ler a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE (2006).

- Também foi utilizado como fonte de pesquisa para a elaboração deste texto:
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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